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Flores à sombra

“Gosto muito de flores que amam a sombra” -Byung-Chul Han

Neste pequeno artigo irei assinalar alguns pontos que me parecem fundamentais para
compreender a ideia de belo enquanto algo transgressor, uma força que brota do negativo, tendo
por base o livro A Salvação do Belo, do sul-coreano Byung-Chul Han.
Desde já o leitor poderia ficar “indignado” com a premissa da qual estou a partir, porque
deveria o Belo ser um elemento de transgressão e não o objeto comum ou o fruto de uma
contemplação cuidada e despida de instintos perturbantes. Creio que de um modo geral posso
aceitar desde já essa crítica em parte, o observador do mundo criado tem tudo para ver nele
algo de belo, numa linguagem mais platónica, existem assinaturas do Belo em vários pontos
que encontramos. Seria loucura minha colocar em causa a beleza dos Tigres de Bengala ou das
cores vivas de uma pintura de Van Gogh.
Parece-me, no entanto razoável, ver constatar junto de autores como Roger Scruton como a
pólis moderna se deformou, transformando-se numa máquina de viver ou até sobreviver o que
está a anos-luz de um jardim humano. Seria tedioso ocupar-me aqui excessivamente da forma
como as cidades prestam hoje culto ao feio, mesmo que talvez em muitos casos por pura
ignorância ou passividade. O que eu não posso considerar que invalide o pathos de velocidade
e eficácia que é no fundo o que está bem presente em todas as obras deste sul-coreano e que o
mesmo denuncia.
De um modo geral, segundo consenso de vários filósofos antigos, todo o Homem busca a
eudaimonia, que se pode traduzir de forma brusca como felicidade, mas que abarca um campo
semântico mais vasto e toca por exemplo no aspeto fulcral do florescimento. Byung-Chul Han
está no fundo a denunciar uma sociedade em que nos é vedada a possibilidade de florescer.
Este autor tem, além disso, como imagem de marca uma ontológica antipatia pelo culto à
transparência, em certo livro apresenta a pedra como o eidos da opacidade e da ligação ao
mundo. Sendo que este acaba por introduzir logo no primeiro capítulo da obra onde estou
particularmente a incidir a ideia de polidez. Deixando uma pergunta e subsequente resposta:
porque razão esta polidez nos atrai? Sendo que na sua compreensão existe uma ligação que
intuitivamente podemos fazer entre polidez e equilíbrio, em oposição ao anguloso que é
cortante isto é, que produz dor. Como é comum em muitos autores, estamos geralmente a
assistir a um combate entre dois cavaleiros opostos, e neste caso é assim mesmo, para entender
Byung-Chul Han há que entender a dicotomia positividade-negatividade, que está presente em
quase toda a sua obra publicada. Deixo propositadamente em aberto se esta identificação do
polido com a ausência de dor e do anguloso que é negatividade com dor é ou não um salto
lógico, ainda que muito eloquente.
A negatividade deve ser lida aqui em termos kafkianos, isto é, uma machadada da realidade,
um dilúvio do adverso, um Processo que por mais absurdo que parece está-aí! Já a polidez
transmite uma sensação ausente de contradição, é limpa, transparente, saborosa. O ataque nesta
obra personaliza-se na figura Jeff Koons sendo, diria eu, o seu Ballon Dog um case study de
como o vazio polido invadiu as galerias de arte: As galerias de arte foram tomadas por
fantasmas.
Existe no livro uma tese, no mínimo problemática, e talvez por isso interessante: Uma
associação entre polidez e hedonismo. Sendo muito claro que as campanhas publicitárias e a
propaganda política apelam geralmente à polidez e os produtos de consumo se apresentem
sempre mais polidos nos cartazes do que nos tabuleiros, não sei se não existe aqui uma
generalização abusiva e não possa existir também um hedonismo no que é ausente desta
camada de polidez.
Por seu lado, uma objeção que me parece mais difícil de assinalar seria a de que o belo polido
foge da negatividade (não encontrará qualquer anúncio que lhe ofereça uma machadada
kafkiana). Esta força negativa é quanto a mim a força do real, sendo infinitamente mais forte
do que qualquer tentativa paliativa da amenizar, julgo que é desta negatividade que está-aí que
podemos intuir um Criador e como tal de um Belo que é superior e transcendente, um belo que
persiste vivo na doença, na morte e violência nas conceções morais humanas.
Observemos o trabalho de Jeff Koons e vejamos como nela reside uma completa ausência de
negatividade, como o seu eidos é o do balão vazio, um existir balofo e teimoso de coisa
nenhuma. Observemos agora a implacavelmente bela sabiá-laranjeira, obra estética que até o
mais firme ateu entenderia como sobre-humana. Neste formoso pássaro sul-americano
encontramos a negatividade, quer no voo, quer na mortalidade que o acompanha, ainda assim
as suas penas alaranjadas trazem uma marca aristocrática de algo maior.
O autor sul-coreano faz menção a um ponto que me parece de alguma importância para o que
está a ser aqui discutido, o mundo digital visto como lugar onde naturalmente se produz ao
máximo coisas vazias de negatividade, isto é, rendidas à mera positividade de um “gosto”
ausente de isso, “mas x”. Esta é uma crítica que se pode fazer de forma pertinente a outras
dimensões da vida humana, nomeadamente da sua existência política, a democracia degradada
atual, uma vez que o voto no partido x é uniformizado e polido e ausente de qualquer reserva,
de qualquer, “mas x”, seguindo no fundo o modelo de qualquer rede social.
É da opinião de muitos que para haver arte tem que haver um certo distanciamento, isto é
objetivamente verdadeiro quando se está numa galeria de arte, apenas a uma dada distância
posso ver o quadro por inteiro. Há, portanto, uma linha de infinitude que separa um quadro de
Goya de um anúncio de coca-cola. Goya ao contrário do anúncio da coca-cola não é promessa
de consumo, nem de nenhum tipo de felicidade liberal, o que Goya nos oferece é mistério e
enigma, que são estranhos para a máquina de produção e consumo pós-modernas.
Byung-Chul Han diz de forma clara que a fealdade é um elemento de dissolução adverso ao
consumo; algo que só uma alquimia pós-moderna pode ressuscitar. É, portanto, para premente
romantizar a fealdade, anulando-lhe completamente o seu eidos.
Uma das críticas que o sul-coreano faz é justamente à última versão do Iluminismo, o
dataísmo, suportada por hábeis contadores de histórias como Yuval Harari, no fundo a
proposta remete-nos já para um pós-modernismo sistematizado, dotado de uma pós-verdade
(mera acumulação e processamento de dados) e uma pós-beleza, não existe espaço para o Belo
quando tudo se reduz a dados.
Um dos pontos que nos permite chegar aqui pode ser encontrado no conceito de temor-a-si
mesmo, arma que combate em prol de uma falsa ideia de privacidade, sendo que o autor que
melhor falou sobre em que é que isto consiste, e com a sua linguagem própria, Kierkegaard.
Existe uma passagem paradigmática desta nova religião laica, passo a citar: “O corpo
encontra-se hoje em crise. Desintegra-se não só em partes corporais pornográficas, mas
também em séries de dados digitais. A fé na mensurabilidade e na quantificabildade da vida
domina a época digital no seu conjunto” (HAN, Byung-Chul. A Salvação do Belo. Lisboa:
Relógio D’Água 2016. Pág.25)
Existe todo um vasto repertório que relaciona o corpo com a arte, nomeadamente as que
encaram o corpo como veículo entre a alma e a obra, raramente podemos dizer que “alguém”
tenha chegado ao absurdo de reduzir a arte a algo quantificável e mero epifenómeno de um
corpo. Desde já porque o sujeito vive em perpétuo devir, é um ser-no-tempo, isto é, uma
metamorfose que caminha. Se essa metamorfose fosse mensurável e a sua expressão também,
não teríamos arte, mas um mero resultado matemático de algo que desconhecemos a identidade.
O dataísmo visa converter tudo em dados, sem nunca ter sequer apresentado uma noção exata
do que são estes mesmos dados em si. Isto é, parte de um pressuposto com um olhar vitorioso,
mas às cegas para o comandante desse mesmo triunfo pós-humano. Claro é que a mera
quantificação das coisas não é um sinal de progresso, a descrição de um café pelo seu teor de
cafeína ou pelo volume de espaço que ocupa é altamente redutora do que é o café em si.
A resposta à minha primeira questão pode ser clarificada com uma bipartição dos termos em
discussão: O Belo entendido como positivo e agradável, em oposição ao Sublime que é
produtor de espanto e terror (por esse mesmo motivo Deus é o Sublime!). Encontramos em
toda a História um belo que dói, que produz delírio, paixão, sendo que isso advém das religiões
e mitologias mais primitivas até aos dias de hoje, a Pietà de Miguel Ângelo é um exemplo vivo
disso. Byung-Chul Han vinca que há ternura do belo existe uma negatividade do Sublime, que
é, em última instância tenebroso, agreste e rude.
Também o cinema é rico a expressar esta dicotomia Belo-Sublime, encontramos isso, por
exemplo, no filme Veredas (1978) de João César Monteiro ou mais concretamente no
magnífico cinema japonês dos anos 60, no Kwadain (1965), sequência de quatro histórias
“contadas” por Kobayashi. Onde penso que também fica clara a possibilidade de beleza no
anguloso. Posto isto é justo afirmar que o Sublime é Superior, o que está além-da-natureza, é
o adjetivo que cada coisa carrega em si. O Sublime é como um Grande Sol, que ilumina tudo
o que existe, mas que cega quem o tenta encarar de frente, daí o temor.
A própria forma como pensamos o belo altera a temporalidade, sendo que o autor de A Salvação
do Belo nos mostra como o belo perdeu a sua carga erótica com o triunfo do digital. A
temporalidade do belo digital é a do imediatismo, o abutre que mata o suspense alimentando o
tédio ou a vida inautêntica. Eu acrescentaria, o belo absoluto, isto é, o Sublime, é o suspense
absoluto em que o Criador nos deixou imersos.
E parece que esta obra está efetivamente em diálogo comigo, passo a citar: “O encobrimento
erotiza também o texto. Segundo Santo Agostinho, Deus obscurecera propositadamente as
Sagradas Escrituras com metáforas, com uma ‘capa de figuras’ para as tornar objeto de desejo.
(ibidem pág. 41).
No capítulo Estética da Vulneração percebemos como este dataísmo e a ideia de progresso
histórico avançam com a sua espada hasteada contra o eros, pois até no domínio das relações
amorosas domina a lógica mercantil da lata de atum: Prazo de Validade (idade), sabor (aspeto),
facilidade de acesso (preço). Ao longo de boa parte do livro Byung-Chul Han entra num
cauteloso duelo com Kant, desferindo-lhe alguns golpes que culminam no capítulo intitulado
Estética do Desastre quando este afirma: “Kant não conhece o desastre” (53). Reforçando essa
ideia apelando a elementos violentos de ordem natural. Kant, segundo o sul-coreano, abriga
se cuidadosamente no seu quarto em dias de tempestade, refugia-se na interioridade, abrigado
da agressão externa (não obstante é importante deixar notar que a sua estética apesar de ingénua
para o autor, é, segundo o mesmo, longínqua do mero consumo).
Por sua vez Byung-Chul Han vê em Hegel uma leitura da estética um pouco diferente, embora
para este autor o conceito seja central, ele concretiza-se no plano empírico e como tal a estética
da negatividade é possível, sendo que em Kant tal não se coloca. A sabiá-laranjeira está aí para
morrer e se desintegrar, a sua beleza sucumbirá, trata-se de uma beleza negativa que culminará
em formosas penas e sangue desprovidos de vida, é uma beleza que está no tempo e sucumbe
ao mesmo.
Neste ponto encontramos a maior tensão, uma vez que a buscamos a Beleza e também a
Verdade, podemos propor que são dois movimentos em busca do mesmo, sendo o primeiro
mais material que o segundo, e o segundo o Imperador que Reina sobre o primeiro e lhe aparece
como negatividade.
Olhemos para o peculiar caso da beleza vista como verdade, um dado empírico que está
homologado mostra-nos como a beleza é muitas das vezes uma arte para a ilusão, isto é, a busca
não é feita com certezas de um encontro com a Verdade, em boa medida a Beleza de um Anjo
Caído faz com que se instalem em nós grilhões difíceis de destruir. Ainda assim existe em
Platão, e o sul-coreano reconhece-o, uma conceção de belo que é geradora ao invés de
consumidora, uma conceção diferente da mera beleza que nos engana, ainda que esta beleza
possa ser produtora de ilusões.
Ainda que tenhamos essas reservas legítimas convido o leitor urbano a ir à janela,
provavelmente verá montras, anúncios e o ziguezaguear das massas, e ruídos de fundo
perturbadores e incómodos. Mas, o leitor vê um pequeno vaso colorido onde desabrocha uma
tulipa, essa tulipa é bela porquê? Neste contexto e à luz do que o livro nos oferece a resposta
seria que a tulipa é bela porque transgride a ordem utilitária da existência, ela exala um perfume
diferente das coisas funcionais da máquina de viver. A beleza está aí, urdida sem mácula nem
usura pelo Mesmo que fará dela pó.
Bibliografia
HAN, Byung-Chul. A Salvação do Belo. Lisboa: Relógio D’Água 2016
HAN, Byung-Chul. Louvor da Terra: Uma Viagem ao Jardim. Lisboa: Relógio D’Água
2020

Este é um texto do meu amigo Antônio Rodrigues que precisei postar aqui pela sua alta qualidade! Obrigada pela parceria 🙂

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